domingo, 5 de novembro de 2006

Domingo de Feira do Livro


As Crônicas da Guaíba
5° Lugar na categoria Adulto
SPUTNIK
de João Melgarejo, publicado pelo Correio do Povo em 1997

Calças curtas com tirantes de tecido. Pés descalços com as solas grossas de tanto transitar nas aventuras da vida, que era um brinquedo só. Eu me repartia entre a Carolina e a Verônica. Numa das esquinas da Venâncio Aires com a Rua dos Andradas, o armazém do seu Florêncio Irizaga, na outra, o do seu Herito, e ainda na outra, lidando com os couros de todo tipo, o seu Laci. Na esquina da mesma rua, mas desta vez fazendo cruza com a avenida Dr. Lauro, estava o armazém do seu Roque, que tinha sido jogador do Peñarol. Defronte, em diagonal, estava a dona Chininha com sua casa cheia de moças, e ela existe até os dias de hoje. A meio caminho, exatamente entre as quadras da avenida Lauro e a rua dos Andradas, estavam a oficina de seu Osvaldo Oliveira e, bem do outro lado da rua, a rampa, ocupando um enorme terreno baldio, cujos limites eram fixados pela pensão do seu Schimitt e pelo bar do Claudionor, casado com dona Santa. Havia também, nesta Venâncio Aires, o seu Souza Macho, casado com dona Elza e que, junto com o Ducterlívio Silva, casado com dona Estrela, eram do Aero Club do Alegrete. Na oficina de seu Osvaldo, iam lá o seu Enio, o Eli Melo, o seu Egídio, o seu Mário e muitos outros. Aos sábados, havia muita risada e até podia ser sentido o cheiro de churrasco, que diziam para mim ser de cachorro ou gato. Tinha também um carro preto, Austin, que era do seu Filoca, casado com a dona Chinica. E mais o seu João Bicca, que diziam ser dono da Companhia Telefônica. Tinha vários filhos e um deles, Ibene, andava de avião, porque era do exército aéreo. Tinha a Nara, o Jeová e o Jobé. Havia também a dona Joana, casada com o seu Sadi. A casa dos Poitevin. Pegado à casa do seu Laci, tinha o Capitão Feijó, que tinha muitos filhos e uma filha, a moça mais linda que eu vi na minha vida. A Mica! Foi também a primeira moça que eu vi pelada, mal e mal, espiando pela fresta da janela lá no alto. Tinha a alfaiataria do seu Lucas, que ficava na casa do seu André Coelho, casado com a dona Velinha. Tinha o Léo Chagas, que trabalhava no Posto, a Lilá e, bem na esquina de Venâncio com Gen. Sampaio, o seu Chichino Brancatto. Na frente, tinha a dona Filinha Motta com as filhas e, na outra, a Inspetoria Veterinária. Dobrando a esquina da Rua dos Andradas, tinha o Coliseu, tinha o seu João Neves, com a cabeça bem branca, e que espetava o dedo na minha barriga. Tinha duas filhas e uma delas me chamava de Joãozinho Monstro. Tinha a barbearia e o açougue do seu Hildebrando, onde se ganhava cabeças, patas, mondongo e bexigas. Ao lado, a casa do seu Silvano, que levava os loucos para longe. Havia na General Sampaio o bar do Pizutti, que tinha dois banheiros e uma descida que termina embaixo de uma parreira e onde tinha um bar que só gente grande entrava para tomar chopp. Na frente estava a ferragem do Abílio Cego e, no pátio, embaixo de um galpão, um automóvel muito bonito, todo preto, no qual se podia viajar para muito longe, talvez até Passo Novo. Duas padarias conhecidas por lá ir, quando as carroças não deixavam o pão no parapeito das janelas: a padaria Suarez e a padaria Estrela. Diziam Estrela, porque a fachada superior parecia ser um desses quepes de general. Era do seu Alves. Na outra esquina da Rua dos Andradas, tinha a sapataria do Dorvalino, que muito courinho para funda forneceu, as borrachas vinham da oficina do seu Oswaldo, que fingia não saber para que eram. Bem na frente estava a Escola Royal, onde se aprendia datilografia, era a esquina do seu Salomão. Antes dela, umas duas casas antes, tinha a oficina do seu Militão Murtinho, que emprestava as serras e algum ferro. O cinema Glória ficava na outra quadra, ainda na Rua dos Andradas. O matinê era o melhor, custava barato, podia entrar com revistas para trocar e sentar nas arquibancadas de madeira lá em cima. O Colégio Oswaldo Aranha, todo cercado de muro bem alto e um campo enorme de grade, onde se podia caçar pombas. O Correio e, na direção dele, a Barraca dos Fouchard. Depois, a fábrica de Café Dreon. E, naquela rua de uma quadra só, Euclides da Cunha, bem na esquina, o Novo Hotel, a casa do Joaquim Milano, dos Galant. Também morava o Zizico, o Sbrissa, o João Peres e dona Céres, que era professora. Tinha a leitaria do seu Dante, e o Leonço, outro barbeiro, que era pai do inventor de apelido Corujão. A bomba de gasolina de seu Serafim, onde se comprava querozene Jacaré, a do seu Mautone, do Telêmaco, o armazém Grillo, A Imperial, o seu Salustiano e dona Mimila, o João Falconière de Abreu com o pátio cheio de frutas, o Clube dos Sargentos, a Associação Comercial e os dois coqueiros. Tinha ali, quase na frente, a casa do Guerra Gomes, o Coronel Galvão, o seu Doca Paim, a casa do seu Picurra com aquela quantidade de árvores cheias de cáqui. Tinha a dona Célia e a Marieta, o seu Escarrone. Ao lado de onde eu morava, estavam a dona China e a Catarina e, do outro, a casa do seu João, casado com dona Alódia. Tinha a dona Marieta, que era viúva. Depois, construiu consultório ali o Dr, Romário Araújo Oliveira, casado com a dona Elza, muito bonita. Ele era irmão do Oswaldo da oficina, tinha também o Juarez de apelido Feio. Tinha dois carteiros, o casado com dona Marina de Oliveira, que era professora, e o seu Oriovaldo. A Banca de revistas do seu Motta e, na frente, a Casa Central. Ao lado dela, vinha o bar do seu Bichara. Havia a casa do seu Alaska. Nas ruas, o Orádio, o Batata, o Zequinha dobrando e desdobrando os pedaços de capim, o Lilico, o Tadeu, o laboratório do Dr. Luicídio que ficava com os sapos que eu caçava na restinga. Então, um dia, quando passava na Farmácia Ribeiro, que ficava na esquina da rua Gaspar Martins com General Sampaio, vi aquele ajuntamento na frente. Era um rádio que estava na janela e quando perguntei o que era aquilo, me mandaram ficar quieto e ouvir como todos estavam fazendo. Ali fiquei, sem entender o que se passava, enquanto eles se adonavam do silêncio e só deixavam ouvir aquele... bip que parecia não ter fim. Quando ia chegando em casa e passei pela casa do seu Mário Sabóia, ele me chamou da janela e disse: - Vem cá, Joãozinho! Vem ouvir que a Rádio Guaíba está dando o sinal do Sputnik passando lá perto da Lua! Como seu Sabóia era uma pessoa muito boa, e mesmo sem entender o que ele me explicava, levantando o volume do rádio Telefunken e apontando para o céu, fiquei por ali, ouvindo quieto. Somente hoje, embalado pela saudade do tempo que se foi, consigo imaginar a importância que deve ter sido para a Guaíba marcar a sua caminhada com aquele acontecimento extraordinário e lembro também como me impressionou à medida que ela passava a ser a companheira constante da casa e da vizinhança, o que para mim era insólito. A propaganda não era igual à das outras rádios: gravada. Aquilo era, com certeza, uma mágica que seria, para mim, eterna. Naquela época, eu tinha um pouco mais de doze anos, e esse era todo o meu mundo, mas esse fato aumentou o tamanho do meu universo até hoje.
João Melgarejo, advogado (Alegrete/RS)


-->

"Diretor" no quadro do Severino do Zorra Total